Entrevista ao Bastonário da Ordem dos Médicos
A SAÚDE EVIDENCIOU-SE COMO UMA ÁREA ESSENCIAL NA NOSSA VIDA COLETIVA, SALIENTA O BASTONÁRIO DA ORDEM DOS MÉDICOS. NESTA ENTREVISTA, EM QUE ANALISA OS DESAFIOS RECENTES, OLHA TAMBÉM PARA O FUTURO, CONCLUINDO SER IMPORTANTE QUE “O PODER POLÍTICO OIÇA OS CIDADÃOS E REFORCE EFETIVAMENTE OS SERVIÇOS DE SAÚDE COM MAIS PESSOAS E EQUIPAMENTOS ADEQUADOS, NÃO DESCURANDO O PAPEL ESSENCIAL DA MANUTENÇÃO E FISCALIZAÇÃO”.
A pandemia vai deixar marcas que nunca vamos esquecer, negativas mas também positivas, afirma Miguel Guimarães. Considera que foram cometidos erros ao não se conseguir antecipar as medidas necessárias, não reforçar a saúde com os meios necessários ou não comunicar da forma mais clara. Ao mesmo tempo, a pandemia veio mostrar-nos quão essencial é esta área, destaca o Bastonário da Ordem dos Médicos (OM). “A relevância da saúde para a economia, para a sociedade e para um país também ficou demonstrada e, hoje, é mais claro que o investimento na saúde é crítico para todas as áreas.”
Olhando para a classe médica, o que o preocupa mais?
Esta resposta é influenciada pelo último ano. Estou muito preocupado com o desgaste físico e psicológico e com o sofrimento ético, que ficarão para sempre gravados em quem esteve no terreno. Os médicos enfrentaram a COVID-19 com níveis de burnout muito elevados, com condições de trabalho precárias, uma carreira por cumprir e muitas horas extraordinárias. Foi um ano muito duro, de um esforço que todos os cidadãos reconhecem, mas não há uma estratégia política de valorização e recuperação destes profissionais. É urgente cuidar de quem cuida de nós para que o possam continuar a fazer com qualidade, segurança e satisfação. Sem saúde não há economia, e este ano provou isso.
“A AUTORIDADE DE SAÚDE NÃO TEM SIDO CAPAZ DE ANTECIPAR AS MEDIDAS NECESSÁRIAS PARA CONTROLAR E ESMAGAR AS CURVAS PANDÉMICAS.”
Há alguma coisa que seja imprescindível fazer no combate à pandemia e que ainda não fizemos?
O combate a uma pandemia, sobretudo a um vírus que desconhecíamos, está longe de ser um caminho fácil.
No entanto, há uma lição que a Organização Mundial de Saúde (OMS) nos deu logo no início e que continua por implementar: antecipar. A autoridade de saúde não tem sido capaz de antecipar as medidas necessárias para controlar e esmagar as curvas pandémicas. Por exemplo, no segundo confinamento, podíamos ter fechado duas semanas mais cedo e recuperar algumas áreas de atividade também mais cedo. Não se encarou a pandemia com a seriedade que merecia e não se reforçaram os serviços de saúde com os meios necessários, sobretudo em termos de capital humano.
Tem criticado as falhas na comunicação por parte das autoridades portuguesas. O que é justo dizer aos portugueses quanto à gravidade da situação e ao tempo que ainda vamos viver condicionados por esta pandemia?
A literacia em saúde é baixa no nosso país, mas acredito que não foi o maior problema que tivemos nesta emergência de saúde pública.
O Governo, o Ministério da Saúde e a Direção-Geral da Saúde comunicaram muitas vezes a várias vozes, de forma errática, misturando a esfera técnica com a esfera política e anuciando e recuando em medidas pouco apoiadas na evidência científica, e que a população ou não apreendeu ou desacreditou. No Natal, a opção política foi de aligeirar medidas, não dar recomendações concretas e ainda houve a propaganda em torno das primeiras vacinas, num verdadeiro cocktail que nos trouxe ao que já conhecemos. Os portugueses precisam de saber que, mesmo com a vacinação, não podemos desviar o nosso caminho das medidas que já conhecíamos e que ficarão connosco muito tempo: distanciamento físico, máscara e higiene das mãos.
Estamos muito centrados na pandemia, mas as outras patologias não desapareceram. Em que medida estão a ser penalizados os outros doentes?
A primeira vez que me referi aos doentes “não COVID” foi em abril de 2020. Na altura, como muitas vezes, a OM foi apontada como uma voz catastrofista. A verdade é que os números da mortalidade já nos indicam que perdemos muitos outros doentes e nos hospitais a morbilidade também indica que os doentes “não COVID” chegam aos serviços de saúde mais tarde, mais doentes e com menor hipótese de uma recuperação plena. No ano passado, em conjunto com a Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares e com a Roche, lançámos o “Movimento Saúde em Dia – Não Mascare a Sua Saúde”, que pretendia precisamente alertar para a importância de não se esquecer os outros doentes. No âmbito desse movimento, a consultora MOAI recolheu alguns dados preocupantes. A opção política de concentrar uma grande parte dos recursos da saúde no combate à pandemia teve um impacto muito significativo nos outros doentes: em 2020, houve menos 7,8 milhões de consultas médicas presenciais nos centros de saúde do que em 2019, reflexo da decisão política de “obrigar” os médicos de família a fazer o Trace-COVID, entre outras tarefas COVID. Os dados foram analisados a partir dos números oficiais do Portal da Transparência do Serviço Nacional de Saúde. O impacto nos hospitais também foi significativo, com menos 3,4 milhões de contactos em 2020, entre consultas, cirurgias e urgências. Já nos meios complementares de diagnóstico e terapêutica, registaram-se menos 25 milhões de atos.
SABIA QUE?
FOI O ISQ QUE CALIBROU E TESTOU A CADEIA DE FRIO PARA AS VACINAS PFIZER E MODERNA
O ISQ fez calibração dos sensores que monitorizam as temperaturas de conservação das arcas congeladoras e ensaios de avaliação de conformidade das arcas que conservam as vacinas COVID-19 da Pfizer e da Moderna, contribuindo assim para o sucesso do processo de vacinação.
Logo em janeiro de 2020, a Ordem dos Médicos criou um gabinete de crise antecipando a pandemia. Qual a importância do trabalho deste gabinete?
Acredito, e isso ficou reforçado ao longo do último ano, que a medicina e a ciência devem caminhar juntas, mas sem nunca relegar a humanização para segundo plano.
O gabinete foi muito importante para acompanharmos a evidência científica e as medidas nacionais e internacionais. Dessa forma, procurámos antecipar medidas, fazer recomendações e alertas. De lembrar que o nosso primeiro comunicado coincidiu com o dia em que foi detetado o primeiro doente em Portugal e, logo nessa altura, fizemos sugestões muito relevantes, como dar autonomia aos hospitais, criar uma linha de financiamento e dividir os hospitais em unidades “COVID” e “não COVID”. Foram vários os momentos em que marcámos a diferença, nomeadamente antecipando a necessidade de máscaras dentro e fora dos edifícios, testagem regular, reforço da saúde pública para quebrar cadeias de transmissão, etc.
Também recentemente a Ordem esteve envolvida (com uma empresa portuguesa) na produção do primeiro ventilador. Como surge esta iniciativa?
Sempre defendi que a medicina e a engenharia devem caminhar juntas e que as empresas e unidades devem trabalhar em parceria. A investigação clínica merece um papel cimeiro para podermos ter serviços de saúde com mais qualidade e melhor desempenho, o que se traduzirá em profissionais e doentes mais satisfeitos. Logo no início da pandemia, percebemos que, além do capital humano, também os equipamentos eram escassos. Juntámos uma equipa de especialistas em medicina intensiva da OM com os engenheiros e restantes profissionais da Sysadvance e começámos a trabalhar num ventilador específico para cuidados intensivos, que só seria produzido e colocado no mercado se conseguisse ter a certificação europeia, porque queríamos apostar num equipamento de alta qualidade que viesse para ficar.
Este equipamento já chegou ao mercado?
Felizmente tudo correu como o previsto e já chegou ao mercado o primeiro ventilador português com a marca CE.
O desenvolvimento e certificação do Sysvent OM1 decorreu em tempo recorde e destaca-se pela sua alta precisão e fiabilidade. No âmbito do movimento solidário “Todos Por Quem Cuida”, que a Ordem dos Médicos constituiu com a Ordem dos Farmacêuticos e com a Apifarma, e que angariou mais de 1,2 milhões de euros que aplicámos em equipamentos e materiais que estavam em falta, vamos também oferecer 30 ventiladores aos hospitais portugueses.
O combate à pandemia fez-se também nos laboratórios e na investigação, desenvolvendo vacinas e equipamentos, validando produtos e processos. Como avalia a colaboração entre a comunidade médica e científica neste contexto?
A pandemia comprovou que os grandes desafios da humanidade conseguem uma resposta melhor e mais célere se o trabalho for desenvolvido em conjunto, em equipa.
As parcerias foram essenciais para enfrentarmos o último ano nas mais variadas áreas e estou em crer que as sementes deixadas, nomeadamente na investigação científica e clínica, vão abrir portas mais facilmente nos problemas futuros. Na verdade, a pandemia veio reforçar o papel crucial da ciência e da investigação em todas as áreas de intervenção social dos Estados.
O que vai mudar na classe médica e na área da saúde em Portugal depois desta pandemia?
Esta pandemia traz sobretudo marcas negativas. É algo que nunca esqueceremos. Mas teve também alguns méritos. Por exemplo, já ninguém arrisca falar de pseudociência e colocá-la lado a lado com a ciência, como tristeme te assistimos na nova Lei de Bases da Saúde. A pandemia mostrou-nos que é na ciência que devemos procurar soluções. A relevância da saúde para a economia, para a sociedade e para um país também ficou demonstrada e hoje é mais claro que um investimento na saúde é crítico para todas as áreas, pelo que espero que o poder político oiça os cidadãos e reforce efetivamente os serviços de saúde com mais pessoas e equipamentos adequados, não descurando o papel essencial da manutenção e fiscalização.
Que lições devem tirar o país e os portugueses enquanto sociedade no seu conjunto?
Que juntos somos mais fortes e que o combate aos grandes desafios depende de todos. Que lutar por uma melhor saúde e por equidade no acesso aos serviços de saúde é uma causa justa e digna de uma sociedade que se quer desenvolvida. Um Direito Humano essencial do qual não devemos prescindir nunca.
Uma mensagem que queira deixar…
Uma palavra especial de solidariedade para com todos os portugueses que de forma direta ou indireta foram afetados por esta pandemia. Uma palavra especial de admiração aos médicos, que represento, extensível a todos os profissionais de saúde, pelo espírito de entrega, sacrifício, resiliência, competência, qualidade, humanidade e solidariedade com que se entregaram neste combate, e por continuarem todos os dias a salvar vidas, mesmo em condições tão difíceis.
Carla Guedes
Coordenadora de Comunicação do grupo ISQ. Autora de "Insights de Comunicação", fundadora da consultora Reputation, tendo antes passado pela Ideia Certa, Weber Shandwick/D&E, GCI, Diário Económico, Publimédia/Expresso e RTP.
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