Ensaios Não Destrutivos em centrais de produção de energia elétrica
Os Ensaios Não Destrutivos (END), amplamente utilizados nas atividades de manutenção e controlo de condição de unidades industriais, nomeadamente nas centrais de produção de energia elétrica, constituem um teste que fornece informação sobre o objeto testado sem o deteriorar, de forma alguma, antes, durante e após o fim do ensaio. Os END são aplicáveis em qualquer fase do processo produtivo e durante toda a vida útil do elemento a ensaiar. Contrariamente ao que acontece nos ensaios destrutivos, nos quais só é possível inspecionar uma amostra de um certo lote (amostragem), com os END é possível testar o lote inteiro, aumentando a confiança, qualidade e segurança do produto.
Os Ensaios Não Destrutivos são baseados em princípios físicos, o que significa que são baseados na determinação de alguma propriedade física do material ou na sua variação. Consequentemente, a aplicação de um método de ensaio a um novo problema exige uma afinação prévia, na qual o especialista (discute-se atualmente a norma ISO que estabelecerá os requisitos para o treino, qualificação e/ou certificação da figura do Engenheiro de END) estabelece claramente a relação existente entre as indicações e a causa que as produz, assim como o seu significado tecnológico.
A afinação requer um período de tempo durante o qual, com a ajuda de ensaios destrutivos ou outros métodos de END, se vai analisando o sucesso na deteção das imperfeições. Adicionalmente, a análise de falhas permite estabelecer com segurança o melhor procedimento a aplicar.
Existem quatro etapas básicas durante a inspeção de um material, peça ou componente usando os métodos de END:
- Escolha do método e técnica adequados. A norma EN ISO 17635, por exemplo, dá indicações sobre o método de ensaio a escolher em função do material, tipo de soldadura e espessura da peça;
- Obtenção das indicações;
- Interpretação das indicações;
- Avaliação das indicações. Na área da soldadura existem normas específicas para cada método de END para serem aplicadas como critério de avaliação.
Neste artigo apresentam-se três procedimentos específicos de Ensaios Não Destrutivos, todos aplicados na Avaliação de Vida Restante de Caldeiras para produção de Energia.
PROCEDIMENTOS ESPECÍFICOS DE END: Medição por ultrassons da Camada Interna de Óxidos
Durante 1993 e 1994 o ISQ desenvolveu um procedimento de ensaio para a medição da Camada Interna de Óxidos (Camada de Magnetite), que se forma no interior de tubos de caldeira a altas temperaturas (como consequência da passagem do vapor), usando ultrassons (técnica de contacto) de alta frequência. É muito importante medir ou estimar a temperatura de funcionamento de componentes de caldeira que trabalham a altas temperaturas, pois permite ter uma ideia do fenómeno de degradação por fluência na vida útil do equipamento/componente.
Durante muito tempo a espessura da camada de óxidos interna foi medida através de ensaios destrutivos, removendo um troço de tubo e preparando uma amostra para se realizar a medição ao microscópio. Após vários meses de pesquisa, envolvendo o corte de dezenas de amostras para confirmação dos resultados, escrevemos o primeiro “projeto” de procedimento para medir esta camada de óxidos interna usando ultrassons por contacto entre a sonda de alta frequência (> 15 MHz) com elevado amortecimento e a superfície externa do tubo.
Este ensaio permite-nos estimar, após a aplicação de diversos modelos matemáticos, a temperatura de funcionamento de um determinado componente da caldeira, possibilitando selecionar zonas para ensaios adicionais, nomeadamente a realização de réplicas metalográficas que permitem caracterizar a microestrutura do metal, verificando a existência de microvazios na fronteira de grão, habitualmente associado a degradação por fluência.
Recordando os primeiros Planos de Inspeção de Avaliação de Vida Restante, este ensaio passou a ser incluído no plano de inspeção de diversas unidades industriais, sendo atualmente caminho crítico na programação das Paragens Programadas das Centrais Térmicas produtoras de Energia.
Inspeção por ultrassons das soldaduras dos suportes das serpentinas de Reaquecedores de Caldeiras de Centrais Térmicas
Nas vésperas do Natal de 1992, o ISQ foi chamado de urgência à maior central térmica do país em virtude de mais uma falha no reaquecedor da caldeira 3. Neste componente a temperatura do vapor é de 535˚C à pressão de 46 bar. O feixe tubular é ligado às paredes divisória e traseira por dois tipos de suportes soldados: um suporte soldado ao tubo e outro soldado à parede.
A falha tinha acontecido na soldadura entre o suporte e o tubo. O material do tubo era aço de baixa liga (para T22 por exemplo, com 1 a 2% de Cr, 0,8 a 1,3% de Mo, 0,05 a 0,15% de C e restante de Fe), o material do suporte era aço-carbono e o material de adição era Inconel (liga austenítica crómio-níquel). Três materiais diferentes com coeficientes de dilatação diferentes.
Várias ruturas tinham ocorrido, temporalmente pouco espaçadas, nestas ligações soldadas, que causavam paragens forçadas da caldeira com custos elevadíssimos (equivalentes a 125 mil euros por dia, naquela data). Da análise de falha dessas ruturas concluiu-se que existiam três mecanismos de degradação que influíam em alturas determinadas:
- Inicialmente, a corrosão sob tensão provocava fissuração na linha de fusão, associada a bordos queimados e principalmente a geometrias com vértices pronunciados;
- Fadiga térmica durante os primeiros milhares de horas de funcionamento da caldeira, com propagação da fissura para o interior da parede do tubo;
- Por fim, fluência, que levava invariavelmente à rutura.
O primeiro método que se tentou usar foi “Líquidos Penetrantes” (PT), o qual se revelou ineficaz por duas razões:
- O acesso a metade dos suportes é impossível (para o método de PT);
- Nas soldaduras com acesso, este é muito limitado.
Por outro lado, a limpeza inicial é de difícil execução, uma vez que as eventuais fissuras se apresentam cheias de impurezas (cinzas e resíduos provenientes da queima) que impedem a atuação do penetrante. O acesso às soldaduras em questão é extraordinariamente difícil, mas possível. O desafio era estabelecer uma metodologia de ensaio usando ultrassons, que permitisse a deteção deste tipo de fissuras.
As normas habitualmente utilizadas não contemplam inspeção de espessuras inferiores a 8mm (10mm na altura) em soldaduras de penetração parcial. Impunha-se, por isso, a elaboração de um procedimento especial.
Após intenso trabalho de afinação do procedimento com recurso a comprovação por métodos destrutivos (usando cortes e ruturas com recurso a azoto líquido, com o auxílio do Laboratório de Materiais do ISQ), estabeleceu-se a primeira versão e iniciou-se o trabalho de inspeção deste tipo de ligação soldada.
Inicialmente a inspeção incidia no conjunto de Serpentinas Superior (que tem quatro zonas com suportes: A, B, C e D), pois é exposto a condições de funcionamento mais gravosas (daí a utilização de um material mais nobre). Posteriormente alargou- -se o âmbito aos quatro bancos do reaquecedor. De salientar que desde a implementação deste controlo nunca mais foram registadas falhas deste tipo neste componente, fazendo atualmente parte do Plano de Inspeção e Avaliação de Vida Restante atrás referido, em todas as paragens de manutenção.
Inspeção por ultrassons de “fissuração em estrela” ou de fissuração do tipo “ligament cracking”
Entre os anos de 1993 e 1994, no âmbito de um projeto de I&D denominado CECA, estudou-se um fenómeno de fissuração chamado “fissuração em estrela”, que consiste no aparecimento de fissuras nos furos de coletores ou tubagens de caldeiras de centrais térmicas. Convém explicitar que estes furos correspondem a picagens com diversos fins:
- Ligações de tubuladuras;
- Purgas;
- Instrumentação (termopares, por exemplo);
- Respiros (“Vents”);
- Orifícios de inspeção (“Cups”).
Este tipo de fissuras aparece quer na superfície externa do componente, sendo facilmente detetado por Magnetoscopia ou Líquidos Penetrantes, quer na superfície interna, pelo que apontámos para a utilização dos ultrassons para a deteção e dimensionamento da imperfeição.
Quando a fissura liga ou tende a ligar dois furos adjacentes do mesmo componente, denomina-se “ligament cracking”. A sua génese está ligada a fenómenos cíclicos, como arranques e paragens, de acumulação de condensados, fadiga térmica e choques térmicos. A dificuldade maior é a geometria complicada que o técnico deve considerar, uma vez que o furo deve ser sondado em todas as direções para garantir que nenhuma eventual orientação da fissura possa escapar à deteção.
Utilizaram-se sondas angulares de ondas transversais para realizar a inspeção, colocando a sonda na superfície externa do coletor ou da tubagem e apontando o feixe de ultrassons para a área a ser examinada (o canto do furo). Este canto produz uma reflexão bastante perfeita, produzindo um eco de grande amplitude e fácil deteção. Deve-se escolher um ângulo de sonda que maximize a refletividade a partir do canto e da fissura. A máxima refletividade produzida pela fissura acontece quando o ângulo de incidência é de 90 graus.
A seguir, deve-se rodar a sonda. Se não aparecer nenhum eco no monitor, não existirá nenhuma fissura com origem no canto do furo. Mas, caso se forme um eco na zona próxima do furo, só pode ser proveniente de um fenómeno de “fissuração em estrela”.
Por outro lado, existe o risco da geometria não possibilitar a utilização do ângulo teoricamente mais adequado (relação diâmetro do coletor/ /espessura do coletor/largura do cordão de soldadura da picagem/espaço para movimentar a sonda), pelo que tem que se recorrer ao mais próximo possível que atinja o canto interno do furo.
Concluindo, o desenvolvimento das aplicações específicas da técnica de ultrassons contribuiu de forma significativa para um controlo de condição mais eficaz nas centrais térmicas em que o ISQ foi chamado a intervir, resultando não só numa melhoria da disponibilidade destas unidades industriais, mas igualmente numa redução de paragens inesperadas, de onde resulta uma exploração mais tranquila e economicamente mais vantajosa para o cliente.
Autor: Bento Ottone Alves, responsável técnico laboratório Ensaios Não Destrutivos
Publicado em: Tecnologia e Qualidade, nº03, Novembro 2016, ISQ, disponível em: bit.ly/2iaEiuH