Entrevista Ana Lehmann | “Estaremos focados na indústria do futuro”
Há apenas alguns meses no cargo, a Secretária de Estado da Indústria afirma que a indústria está a ganhar um papel cada vez mais relevante na economia nacional. Para isso têm contribuído medidas de incentivo como a Indústria 4.0 ou a estratégia de empreendedorismo. Mas ainda há desafios a ultrapassar, como “a falta de recursos humanos qualificados para trabalhar na indústria”, salienta Ana Lehmann. É, pois, crucial apostar na formação e na aproximação dos jovens a este setor.
Que balanço faz destes três primeiros meses como Secretária de Estado da Indústria?
Faço um balanço extremamente encorajador. Portugal está a atravessar um momento muito positivo no que diz respeito ao crescimento económico, com a indústria a dar um forte contributo. Vamos executar as medidas para a Indústria 4.0 e prosseguir a estratégia para o empreendedorismo, aprofundando e escalando estas dinâmicas e introduzindo algumas abordagens complementares, como o fomento das ligações entre grandes empresas (nacionais e internacionais) e empresas de menor dimensão (startups ou PMEs), a aproximação das populações às fábricas com o lançamento de Open Days e dos jovens à indústria, através da formação. Estaremos focados na indústria do futuro.
Que desafios é que essa estratégia enfrenta?
Um dos grandes desafios que muitos empresários, associações e clusters com quem tenho dialogado mais referem é a falta de recursos humanos qualificados para trabalhar na indústria. Urge apostar em iniciativas de formação orientadas para a indústria e para as necessidades concretas das empresas. É necessário aproximar os jovens da indústria, fazê-los sentir que trabalhar numa fábrica é prestigiante e que a indústria oferece carreiras sólidas e especializadas.
Que esforços estão a ser feitos nesse sentido?
Estamos a preparar uma campanha com base nos instrumentos e nas plataformas que os jovens mais utilizam, como os vídeos e as redes sociais. Em paralelo, estamos a trabalhar no financiamento, modernização e digitalização da indústria, bem como no enquadramento regulatório de atividades mais emergentes e disruptivas. Mas estamos sobretudo a combater o mito da separação entre empresas estabelecidas e startups e a fomentar as transações de bens e serviços entre estas, mas também a co-criação de tecnologias e inovação a diversos níveis através de alianças estratégicas entre startups e ‘corporates’ (empresas mais estabelecidas e de maior dimensão).
Como é que isso se materializa?
As grandes empresas ou grandes investidores podem utilizar tecnologias desenvolvidas pelas startups/PMEs e também bens e serviços, nomeadamente business-to-business (B2B). De referir que algumas das empresas emergentes mais bem-sucedidas do ecossistema são B2B e abertas a iniciativas que permitam reduzir o risco das empresas mais jovens.
O Estado também pode ser potenciador destas ligações, estimulando a criação de alianças estratégicas entre grandes empresas, PME e startups. Há que ter uma visão holística e mais abrangente do que é o “ecossistema” e incluir grandes empresas, investidores internacionais, entre outros intervenientes.
Numa sociedade cada vez mais voltada para os serviços como vê o papel da indústria mais tradicional?
Portugal não se pode demitir da sua vocação industrial. A indústria portuguesa tem inovação na tradição e as medidas da Indústria 4.0 visam apoiar a digitalização de todo o tipo de empresas e em diferentes momentos de modernização: de serviços ou da indústria transformadora. A digitalização não se expressa apenas na construção de uma página web ou do reforço do comércio eletrónico mas, nas fábricas, tem um papel fundamental na eficiência e otimização dos processos produtivos.
Esta é, portanto, uma transformação a vários níveis…
A modernização da indústria e a indústria 4.0 não são apenas fenómenos tecnológicos. São fenómenos sociais, em que a adaptabilidade e a formação dos trabalhadores é crítica. A digitalização vai alterar o papel dos colaboradores na cadeia de produção das empresas. Por isso, é necessário que estes atualizem as competências e ganhem novas capacidades. A reconversão das competências dos trabalhadores e a criação de novos postos de trabalho é fundamental e uma das principais linhas definidas para a implementação da Indústria 4.0.
O que está a ser feito para promover essa atualização de competências?
O Governo desenhou várias medidas neste âmbito. O programa InCODE – Programa de Competências Digitais visa dar formação em tecnologias de informação a mais de 20 mil pessoas, em colaboração com o setor privado. Está ainda prevista a criação de Learning Factories, fábricas reais com equipamentos que recriem ambientes de Indústria 4.0. No reforço da ligação com as universidades está prevista uma revisão dos currículos dos cursos profissionais técnicos para haver uma adaptação ao que procuram as empresas.
Nessa área da formação, estão envolvidas várias entidades…
Gostaria de destacar o papel que o ISQ tem tido na área da formação dos recursos humanos, com uma formação profissional que abrange todas as áreas de conhecimento técnico do Instituto. O desenho de cursos tendo em conta as necessidades das empresas e a qualificação com vista à formação são essenciais para o contributo de quadros altamente especializados, sobretudo nas áreas técnicas que o ISQ tão bem desenvolve. Além de, claro, o valioso contributo que uma entidade como o ISQ tem no domínio da inovação de ponta e na internacionalização da nossa economia via atividades intensivas em conhecimento.
Qual o papel que se espera das empresas?
É necessário que as empresas contribuam também para esta mudança, investindo, adaptando e formando os seus recursos humanos para dar resposta aos novos desafios, a múltiplos níveis, desde o secundário em termos de ensino profissional, até ao superior passando por formações específicas em centros especializados que trabalham muito de perto com a indústria.
A campanha de sensibilização para aproximar os jovens da indústria também aumentará o número de recursos humanos disponível para este tipo de funções. Queremos mostrar que a indústria é sexy e que é prestigiante trabalhar na indústria.
O foco na indústria quer dizer que o empreendedorismo perde relevância nos próximos anos?
De forma alguma, reforçam-se mutuamente. O empreendedorismo continua a ser uma prioridade para o Governo, através do Programa Startup Portugal, uma estratégia a quatro anos que estamos a implementar com grande sucesso. Ainda muito recentemente lançámos o programa Semente, para startups que necessitam de captar a primeira vaga de investimento para iniciar o seu crescimento e cujas candidaturas estão abertas. Estamos também a colocar no terreno o fundo 200M, que apoia startups em fase mais avançada de escalabilidade e que necessitam de se internacionalizar, através de coinvestimento público e privado.
Já há resultados visíveis?
Os vários instrumentos estão a ter bons resultados. Estamos, ainda, a planear a disponibilização de novos instrumentos que promovam o scaling up das nossas startups, bem como da entrada em Portugal de importantes redes internacionais com essa finalidade.
Destaco ainda o importante trabalho que a Rede Nacional de Incubadoras tem desenvolvido para apoiar o ecossistema. A Rede Nacional de Incubadoras conta atualmente com 135 membros, o que representa um aumento relevante face às 121 do ano passado, que consideramos muito expressivo.
Qual a grande vantagem da incubação?
A taxa de sobrevivência das novas empresas fora das incubadoras é drasticamente inferior à de empresas que estão em ecossistemas de incubação. As incubadoras permitem criar ambientes onde os empreendedores podem trabalhar e interagir com outros empreendedores que estão a lançar as suas ideias, mas também com pessoas que já receberam mentoria, criando-se um ambiente multiplicador de formação, know-how e aproximando os empreendedores das universidades, dos capitais de risco, dos business angels e dos investigadores.
De que forma podem as políticas públicas ajudar ao crescimento e à internacionalização das empresas?
Temos já um vasto conjunto de medidas e incentivos para apoiar a modernização, o crescimento, a formação de recursos humanos e também a internacionalização empresarial. A Indústria 4.0 conta com vários instrumentos de financiamento para as empresas investirem em recursos para a transformação digital da economia. Está prevista a mobilização de Fundos Europeus Estruturais e de Investimento até 2,26 mil milhões de euros de incentivos, com os apoios disponibilizados através do Portugal 2020. Este valor pode apoiar a internacionalização das empresas, criando condições que fomentem a competitividade externa, apostando em inovação, na digitalização e na presença em cadeias de valor internacionais. Também o programa Interface, para a ligação entre empresas e ciência, apostando na partilha de conhecimento e do qual faz parte o relançamento da política de clusters, pode ser aproveitado pelo setor.
Qual a importância dos clusters?
A política de clusters assume um papel relevante no reforço das condições para a internacionalização e aumento das exportações e também para a atração de investimento para Portugal. Estamos a reforçar estratégias de eficiência coletiva e plataformas de cooperação que promovam a entrada em cadeias de valor internacionais, a criação de marketplaces e a promoção de alianças estratégicas de inovação ou de produção para chegar, de forma mais eficaz, aos mercados internacionais.
Que outras formas de apoio estão a ser equacionadas?
Estamos ainda a estudar mecanismos financeiros e seguros de crédito, adaptados às necessidades de cada setor. Estou convicta de que o conjunto das políticas e das iniciativas disponibilizadas vão contribuir para o reforço da internacionalização das empresas portuguesas e para o aumento das exportações. E conto com o ISQ neste caminho em prol da modernização e da crescente abertura e crescimento da nossa economia.
Perfil
Ana Lehmann deixou o cargo de presidente da InvestPorto, braço de investimento da Câmara Municipal do Porto, para liderar a Secretaria de Estado da Indústria, em julho de 2017. Economista, licenciada pela Faculdade de Economia do Porto, fez o doutoramento (PhD) em Economia e Negócios Internacionais na Universidade de Reading, no Reino Unido. Fez carreira académica, foi também vice-presidente da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte (CCDR-N) e foi consultora de instituições internacionais, como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) e a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), bem como de várias entidades governamentais e de empresas.
Entrevista disponível na revista Tecnologia & Qualidade do ISQ | janeiro – junho 2018 em: https://bit.ly/2oeruVw